segunda-feira, 16 de abril de 2012

O triste fim de uma igreja

“Porque ninguém pode lançar outro fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo”. (1Co 3:11).

CENA UM

Filipe e sua esposa Raquel chegaram cedo ao templo naquela manhã de outono de 2014. Como de costume, toda a congregação participou da primeira parte da celebração, e, após o louvor inicial, os menores foram encaminhados para o culto infantil. Enquanto aguardava o início da assembleia extraordinária, Filipe olhava atentamente para alguns detalhes no velho templo, recordando fatos antigos vividos ali. Sua mãe assentada diante do harmônio, tocando com maestria e grande reverência hinos clássicos – o favorito, que mais a comovia, começava assim: “Da Igreja é fundamento Jesus o Salvador/ Em Seu poder descansa, é forte em Seu amor/ Porquanto permanece, a Igreja existirá/ Com vida renovada, jamais perecerá!”. E o pai, zeloso presbítero, homem que amava sua igreja como poucos. Os dois faleceram cedo, e não acompanharam as profundas transformações ocorridas em sua denominação. Ali se conheceram na infância, cresceram juntos na Juventude Evangélica, começaram a namorar, casaram-se e tiveram cinco filhos, dos quais Filipe é o mais novo. “Filho, quando for se casar, procure uma moça da nossa igreja, que compartilhe a mesma fé em Cristo e na Palavra de Deus”, alertava o pai. Filipe seguiu o conselho, casando-se com Raquel, filha e neta de dedicados membros daquela Comunidade. Passaram-se os anos, a estrutura física do templo manteve-se inalterada, mas as mensagens pregadas naquele centenário púlpito de madeira mudaram bastante. Desde a infância de Raquel e Filipe, até os primeiros anos de vida do filho Lucas – hoje um jovem e promissor engenheiro – os sermões pastorais que o casal ouvia centravam-se na pessoa de Cristo, Sua obra na cruz do Calvário, a salvação por graça mediante a fé, a necessidade de santificação dos crentes e a esperança no retorno do Senhor Jesus. Nas duas últimas décadas, porém, o tema principal passou a ser o combate às injustiças sociais. Os costumes também mudaram drasticamente. Raquel frequentemente alertava com tristeza o quão impróprias eram as vestes que algumas jovens usavam, inclusive durante os cultos, e como a juventude daquela igreja vinha adotando práticas mundanas, como beber e frequentar bailes. “Como é possível, pais permitindo que seus filhos durmam com suas namoradas dentro de casa, como se fossem casados!”. Aquilo, para ela, era o fim, mas raramente alguém aceitava seus conselhos e exortações.

A assembleia teve início com uma leitura isolada de João 17:21. “A fim de que todos sejam um”, repetiu o jovem pastor, antes de dar início à exposição de motivos. Filipe e Raquel conheciam-no bem, pois fora colega de escola de Lucas, o filho do casal. Em seguida, o pastor passou a proferir comentários elogiosos ao catolicismo romano, com o qual aquela denominação já vinha mantendo laços de amizade por vários anos. E, prosseguindo, concluiu: “Irmãos, nossa igreja, reunida em concílio, tomou importante decisão. Chegou a hora de encerrarmos definitivamente qualquer divergência com a Igreja Católica Apostólica Romana. Concluímos que nossas pequenas diferenças não justificam estarmos separados. Há uma só fé! Por isso, venho comunicar a palavra de nossa Presidência, com amplo apoio de nossos ministros: desde já, somos parte integrante da Igreja Católica!”.

As palavras do pastor não terminaram neste ponto, mas Filipe só ouviu até aí. Logo, uma forte vertigem lhe tomou o corpo, e sua concentração desapareceu. Um sentimento de profunda angústia se apoderou dele. Olhou para Raquel, que parecia assustada com o que ouvia, mas os demais membros não demonstravam grande contentamento ou descontentamento. “Preciso ir, meu bem”, foi só o que ele disse, antes de se levantar, e deixar a reunião, seguido da esposa.

CENA DOIS

Era o primeiro dia do ano de 2015. Passados quase oito meses desde a assembleia extraordinária, Filipe e Raquel pouco participavam das reuniões – que passaram a ser missas – naquela Comunidade. Constantemente cogitavam buscar uma denominação protestante séria, fiel aos princípios da Reforma, para lá congregarem, mas o imenso amor pelos irmãos, e uma boa dose de apego às tradições familiares vinham, até então, constrangendo-os a adiar essa decisão. Mesmo assim, optaram por ir à missa naquela manhã de ano novo. A liturgia mantinha-se razoavelmente semelhante ao que era no passado, e o ex-pastor (agora padre) sempre dizia que não havia porque os membros se desligarem. “Somos uma Comunidade com um jeito próprio, nosso passado é respeitado”. Ele e os demais ex-pastores que, à época da adesão ao catolicismo, já eram casados, puderam manter-se nessa condição, o que foi considerado um grande sinal de “boa vontade” por parte do papa. Chegando lá, logo Filipe e Raquel tomaram o assento, depois de cumprimentarem alguns. Até que ela apertou firme a mão do esposo e sussurrou em seu ouvido: “bem, olha lá!”, apontando para uma grande imagem de escultura num dos cantos do altar. Filipe, sem pensar muito, virou-se para um senhor assentado à sua esquerda, dizendo: “O que é aquilo ali?”. “Foi ordem do bispo. Puseram na época do Natal”, respondeu o senhor. A celebração teve início, e, por respeito, Filipe e Raquel permaneceram até o fim, suportando o desgosto de ver o sacerdote rezar uma ave-Maria após a comunhão. “Não sei se volto mais aqui”, foi o que ele disse à mulher, na saída.

CENA TRÊS

Junho foi o mês que Filipe e Raquel escolheram para tirarem férias naquele ano de 2015. Foi também quando decidiram solicitar seu desligamento do rol de membros de sua antiga Comunidade Evangélica, agora parte da paróquia católica de “São Benedito”. Naquela primeira noite de descanso, Filipe assentou-se diante da TV, já pensando na viagem que ele e a esposa fariam em poucos dias. O telejornal anunciava: “Festa para os católicos! O Vaticano publicou um novo dogma de fé, reconhecendo Maria como corredentora!”. Certo de que essa notícia o irritaria, Filipe fez menção em trocar de canal, mas mudou de ideia. “Puseram uma nova redentora para a humanidade! Até que ponto vão insultar a obra de Cristo?”, resmungou, enquanto aguardava a reportagem. Então, teve outra decepção. Dentre os flashes das celebrações católicas no Brasil, ocorridas em vários estados e exibidas no telejornal, viu nitidamente uma cena em que o ex-pastor presidente nacional de sua antiga denominação, hoje padre em uma das paróquias paulistanas, aparecia ao lado do arcebispo católico de São Paulo, o qual erguia uma escultura de Maria, para o delírio de uma multidão de fieis.

CENA QUATRO

Na segunda feira seguinte, Filipe foi conversar com o padre da sua antiga Comunidade. Já na qualidade de ex-membro, sentiu um firme desejo de falar àquele jovem, por quem nutria um profundo carinho desde a época em que era uma criança, colega de escola do filho de Raquel e Filipe. Mesmo sabendo que nenhuma resposta no mundo poderia justificar tudo aquilo, Filipe precisava ouvir o ponto de vista daquele ex-pastor e ex-crente. E, com essa ideia fixa, adentrou na sala onde outrora ficava o gabinete pastoral. Lá, o padre cumprimentou-o com cortesia, e também com certa desconfiança. Então, veio à mente de Filipe a lembrança do adolescente, amigo de seu filho, anos atrás, cantando no coral da Juventude Evangélica: “Ao único que é digno de receber/ A honra e a glória, a força e o poder/ Ao Rei eterno, imortal, invisível mas real/ A Ele ministramos o louvor!”. E fitou-o com profunda ternura. “Sabe padre, eu vou ser direto. Gosto de você como de um filho! Teria imenso prazer de sempre tê-lo como meu pastor. Mas não posso permanecer numa igreja onde Cristo não é o único Senhor, e a Bíblia não é a única palavra de Deus. Mas eu quero que você me diga: por que? Por que você está aqui? O que aconteceu com a fé que havia no seu coração?”.

Essas palavras perturbaram o jovem padre. Mas o carinho, visivelmente sincero, demonstrado por Filipe, tornavam impossível qualquer sentimento de ofensa. O padre então olhou para aquele senhor, e disse: “Olha, senhor Filipe. Antes eu cria que a Bíblia é perfeita, sem erros, e essa era a base da minha fé. Mas o Seminário muda a gente. Conhecemos outros pontos de vista, abrimos a mente. Aprendemos filosofia, e inclusive a obra de pensadores ateus. E percebemos que o homem evoluiu muito. Hoje somos melhores do que os reformadores do século XVI, e estamos muito à frente da sociedade de Israel da época de Jesus. A teologia muda, evolui, e sempre vai evoluir, conforme as necessidades humanas. Considero-me hoje um humanista”. Filipe chocou-se com a ingenuidade arrogante daquelas palavras, mas não ousou interromper. “E quanto ao catolicismo, Roma, papa, para que brigar contra tudo isso?”, prosseguir o padre. “Podemos fazer muito pela humanidade juntos. Isso, para mim, é suficiente”. Dito isso, houve pausa e silêncio.

Um minuto, ou menos, de silêncio. Nesse breve momento, Filipe lembrou-se de várias ocasiões em que Deus o havia agraciado. Após a repentina morte dos pais, quando ele contava com apenas quinze anos, muitas e maravilhosas bênçãos o Senhor derramou sobre a vida do então adolescente Filipe Jansen. Sustento material para a numerosa família, amigos mais chegados que irmãos, o casamento com Raquel, o nascimento de Lucas, e, em todo o tempo, uma paz tranquila que realmente excedia todo entendimento. Centenas de orações carinhosamente respondidas pelo Pai, com quem ele de fato desfrutava e desfruta de íntima comunhão. Como era possível um ministro ordenado pela igreja não conhecer estas coisas que, para Filipe, eram tão reais e claras?

CENA CINCO

Filipe, antes de sair, e pela última vez, fitou os olhos naquele templo, agora mudado. Imagens de escultura, cartazes da “Campanha da Fraternidade”, um convite para a festa junina da paróquia. Em sua mente, ecoavam as últimas palavras ditas ao padre, que no passado, fora colega de escola de seu filho. “Espero que um dia, a despeito de todas as inconveniências profissionais, Deus venha a se revelar a você, meu amigo, e seu coração seja tocado pela maravilhosa graça de Jesus Cristo! Pois, se isso acontecer, você terá fé!”.

OBS: os personagens e fatos aqui descritos são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas e fatos reais é mera coincidência. Porém, a ameaça que paira sobre algumas denominações cristãs, essa é bem real.

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